(Nota: as páginas indicadas referem-se sempre às monografias dos respectivos autores mencionados, constantes na bibliografia em fim de artigo)
À Administração Pública
são conferidas diversas prerrogativas que têm de ser analisadas, discutidas,
trabalhadas e aplicadas para que a actuação administrativa, nas suas diferentes
formas, seja a melhor possível na defesa dos direitos dos particulares e do
Estado de Direito em geral. Na prossecução desse interesse público têm de ser
respeitados diversos princípios, sendo de se referir em primeiro lugar o da
legalidade. Este, impõe o respeito pelo ordenamento jurídico em geral (há até
autores como Paulo Otero e Marcelo Rebelo de Sousa que fazem evoluir este
princípio dando-lhe o nome de “juridicidade”) e às normas concretas que definem
cada tomada de decisão, cada acção da Administração.
Uma forma de actuação dos
órgãos administrativos é a produção de actos administrativos. Neles, e no
devido cumprimento da legalidade, a Administração rege-se pelos poderes de
vinculação e de discricionariedade que representam os limites e a liberdade da
sua conduta.
O poder vinculado, como
vimos num artigo anterior, define-se por não deixar margem de manobra a
qualquer tomada de decisão. A lei prevê qual o órgão actuante e obriga-o em
todos os apectos da sua actuação.
O poder discricionário é
mais denso e menos concreto na sua definição. Na sua concepção mais simples, ele
reflecte o balizamento das possibilidades de actuação enquadrado pela norma,
quer seja na sua previsão, na sua estatuição, ou até no operador deôntico
(“pode” em vez de um “deve” vinculativo). Fala-se em liberdade de actuação mas
sempre dentro dos limites impostos pela normatividade. Assim, surgem na
doutrina dois temas de discussão sobre o que devemos ou não considerar como
poder discricionário: o preenchimento de conceitos indeterminados (ou a
discricionariedade conceptual) e a discricionariedade imprópria.
Os conceitos
indeterminados são elementos de incerteza que compõem as normas, atribuindo
assim a quem as aplica a faculdade da interpretação. Este acto interpretativo
é, no seu método (ou operação de subsunção como lhe chama Freitas do Amaral, p.
108), um elemento vinculado dada a regulação, por exemplo, nos artigos 9º e 10º
do Código Civil. No seu conteúdo já encontramos maiores discrepâncias entre as
posições doutrinárias como veremos de seguida.
Freitas do Amaral
distingue depois dois tipo de preenchimento valorativo das leis: uma valoração
objectiva e outra subjectiva. No primeiro caso compete encontrar o sentido da
norma para aplicação no caso concreto tendo em conta apreciações sociais e
actualistas, por exemplo, no preenchimento de conceitos como os de “bons costumes”
ou a “ordem pública” – denotando até alguma aproximação à activdade subsumível
mencionada anteriormente. No segundo caso estamos perante uma verdadeira
actividade criadora por parte do intérprete da norma, ou seja, a busca pela
solução mais adequada tendo em conta o seu próprio critério. Há aqui uma
valoração autónoma por parte do agente aplicador da norma que não poderá ser
colocada em causa em tribunal, a não ser por manifesto desvio interpretativo.
Vieira de Andrade parece
fazer a mesma diferenciação teórica acima mencionada, distinguindo, por um
lado, entre conceitos classificatórios que remetem para juízos de experiência
comum e suscetíveis de controlo pelo juiz e, por outro, conceitos subjectivos
onde a indeterminação conceitual concede um espaço de avaliação e concretização
à Administração, não estando, portanto, aqui sujeita ao crivo jurisdicional, a
não ser, claro, numa apelidada zona de repartição de competências onde os
tribunais aferirão apenas se os princípios jurídicos foram respeitados. (pp 44
e 45)
Marcelo Rebelo de Sousa identifica
em primeiro lugar a margem de livre decisão como elemento da actuação
administrativa que fica de fora do controlo judicial quando em causa estão apenas
razões de mérito. Dentro desta encontra-se a margem de livre apreciação que se
reflete na atribuição à Administração de uma capacidade avaliativa dos
pressupostos que compõem cada actuação, cada tomada de decisão. E será aqui
dentro que encontramos os conceitos indeterminados como elementos
interpretativos das normas que nos permitam chegar, ou não, à margem de livre
decisão, ou seja se fogem, ou não, ao controlo jurisdicional. Este autor
considera de facto difícil encontrar um critério que nos permita separar uns elementos
de outros, propondo, então, três distinções:
· Se estivermos perante uma interpretação meramente
linguística (à semelhança da subsunção) não há margem de livre apreciação;
· Os casos em que o controlo jurisdicional
implicaria uma usurpação do poder administrativo em clara violação da separação
de poderes, havendo então lugar àquela margem;
· Os casos em que os direitos fundamentais dos
particulares sejam atingidos dando, portanto, aos tribunais poder para
controlar a actuação administrativa, afastando assim a margem de livre
apreciação.
Resumidamente, parece-nos
que no primeiro ponto acima descrito, Marcelo Rebelo de Sousa se aproxima da
nossa consideração sobre o método de interpretação vinculativo, bem como os
seus resultados no caso concreto. Depois, nos pontos seguintes, acaba por fazer
uma distinção semelhante à dos dois autores anteriormente analisados, ou seja:
as práticas administrativas, no âmbito do preenchimentos dos conceitos
indeterminados, apenas são susceptíveis de controlo jurisdicional quando em
causa esteja a violação da legalidade na vertente do respeito pelos princípios
jurídico-administrativos. Nunca por razões de mérito. Esta é também a nossa
posição.
Olhemos então agora para
a outra formação teórica aqui em causa. A Discricionariedade Imprópria é uma
construção doutrinária divisiva composta por três realidades: a
discricionariedade técnica (fundamentada por pareceres técnicos e no respeito
dos princípios jurídico-administrativos), a justiça burocrática (a realização
de juízos valorativos como o será uma avaliação) e a liberdade probatória (a
apreciação dos meios de prova necessários no âmbito do procedimento). São três tipos de situações que representam para
alguns autores uma espécie de poder vinculado em escolher a melhor – ou a única
– opção que realmente prossegue da melhor maneira o interesse público. Vejamos
então o que dizem sobre isso.
Freitas do Amaral, usa a
discricionariedade técnica para, em representação das outras duas situações,
nos demonstrar que alterou a sua opinião em relação a este aspecto. Enquanto
antes afirmava que perante duas situações tecnicamente idênticas uma teria de
ser, num dado local e momento, a mais correcta, hoje considera que apesar de
não haver uma liberdade de escolha entre as várias opções possíveis, há um
poder-dever jurídico de escolher a melhor solução possível, não sendo esta, no
entanto, anulável em tribunal com base no seu mérito. Este autor diz-nos então
que não existe discricionariedade imprópria uma vez que toda a actuação discricionária
da Administração deve conseguir encerrar em si uma única decisão válida. No
fundo, como se a definição de toda a discricionariedade fosse aquela que é dada,
em geral, à discricionariedade imprópria. (pp. 82 e 83).
No sentido inverso parece
ir Marcelo Rebelo de Sousa ao considerar a discricionariedade técnica como
simples discricionariedade. Assim, e tendo em conta que os juízes se auxiliam
cada vez mais de peritos para ultrapassar limitações próprias, os tribunais
estão menos restringidos no controlo jurisdicional que podem fazer quando está
em causa este tipo de discricionariedade. Para este professor apenas surge um
dever vinculado quando “as normas extra-jurídicas para as quais a lei remete
admitirem como válida apenas uma” solução. (p. 181).
Já Vieira de Andrade
qualifica como discricionariedade as prerrogativas administrativas de avaliação
– entre as quais encontramos a justiça administrativa em representação da
discricionariedade imprópria – sujeitas a fiscalização por parte do juiz no
âmbito da repartição de competências já mencionada no caso do preenchimento dos
conceitos indeterminados (pp. 47 e 48)
Em qualquer um dos casos
analisados acima, o que interessa realmente saber é se o tribunal pode ou não
anular uma decisão administrativa. Como Vieira de Andrade, achamos que este
problema coloca-se no âmbito das relações tripolares entre Lei, Administração e
Juiz (p. 43). Assim, defendemos então que a discricionariedade imprópria não
existe uma vez que não passa de simples discricionariedade e que, em relação
aos conceitos indeterminados, reconhecemos como justa a distinção entre uns
elementos mais objectivos, capazes de controlo; e outros subjectivos que apenas
podem ser avaliados em sede jurisdicional pelo respeito à legalidade e aos
princípios do Direito em geral e do direito administrativo em particular.
Como podemos ver através
de toda a exposição acima, a definição de discricionariedade não é, certamente,
vinculada.
Bibliografia:
Diogo Freitas do Amaral – Curso de
Direito Administrativo Vol. II, edição de 2001, Coimbra
Marcelo Rebelo de Sousa e André
Salgado de Matos – Direito Administrativo Geral Tomo I, Lisboa 2009
José Carlos Vieira de Andrade – Lições de Direito
Administrativo, 2ª ed., Coimbra 2011
Francisco Vasconcelos - 26558
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