sábado, 7 de maio de 2016

Ser ou Não Ser do Poder Discricionário – Os Conceitos Indeterminados e a Discricionariedade Imprópria

(Nota: as páginas indicadas referem-se sempre às monografias dos respectivos autores mencionados, constantes na bibliografia em fim de artigo)


À Administração Pública são conferidas diversas prerrogativas que têm de ser analisadas, discutidas, trabalhadas e aplicadas para que a actuação administrativa, nas suas diferentes formas, seja a melhor possível na defesa dos direitos dos particulares e do Estado de Direito em geral. Na prossecução desse interesse público têm de ser respeitados diversos princípios, sendo de se referir em primeiro lugar o da legalidade. Este, impõe o respeito pelo ordenamento jurídico em geral (há até autores como Paulo Otero e Marcelo Rebelo de Sousa que fazem evoluir este princípio dando-lhe o nome de “juridicidade”) e às normas concretas que definem cada tomada de decisão, cada acção da Administração.

Uma forma de actuação dos órgãos administrativos é a produção de actos administrativos. Neles, e no devido cumprimento da legalidade, a Administração rege-se pelos poderes de vinculação e de discricionariedade que representam os limites e a liberdade da sua conduta.
O poder vinculado, como vimos num artigo anterior, define-se por não deixar margem de manobra a qualquer tomada de decisão. A lei prevê qual o órgão actuante e obriga-o em todos os apectos da sua actuação.

O poder discricionário é mais denso e menos concreto na sua definição. Na sua concepção mais simples, ele reflecte o balizamento das possibilidades de actuação enquadrado pela norma, quer seja na sua previsão, na sua estatuição, ou até no operador deôntico (“pode” em vez de um “deve” vinculativo). Fala-se em liberdade de actuação mas sempre dentro dos limites impostos pela normatividade. Assim, surgem na doutrina dois temas de discussão sobre o que devemos ou não considerar como poder discricionário: o preenchimento de conceitos indeterminados (ou a discricionariedade conceptual) e a discricionariedade imprópria.

Os conceitos indeterminados são elementos de incerteza que compõem as normas, atribuindo assim a quem as aplica a faculdade da interpretação. Este acto interpretativo é, no seu método (ou operação de subsunção como lhe chama Freitas do Amaral, p. 108), um elemento vinculado dada a regulação, por exemplo, nos artigos 9º e 10º do Código Civil. No seu conteúdo já encontramos maiores discrepâncias entre as posições doutrinárias como veremos de seguida.

Freitas do Amaral distingue depois dois tipo de preenchimento valorativo das leis: uma valoração objectiva e outra subjectiva. No primeiro caso compete encontrar o sentido da norma para aplicação no caso concreto tendo em conta apreciações sociais e actualistas, por exemplo, no preenchimento de conceitos como os de “bons costumes” ou a “ordem pública” – denotando até alguma aproximação à activdade subsumível mencionada anteriormente. No segundo caso estamos perante uma verdadeira actividade criadora por parte do intérprete da norma, ou seja, a busca pela solução mais adequada tendo em conta o seu próprio critério. Há aqui uma valoração autónoma por parte do agente aplicador da norma que não poderá ser colocada em causa em tribunal, a não ser por manifesto desvio interpretativo.

Vieira de Andrade parece fazer a mesma diferenciação teórica acima mencionada, distinguindo, por um lado, entre conceitos classificatórios que remetem para juízos de experiência comum e suscetíveis de controlo pelo juiz e, por outro, conceitos subjectivos onde a indeterminação conceitual concede um espaço de avaliação e concretização à Administração, não estando, portanto, aqui sujeita ao crivo jurisdicional, a não ser, claro, numa apelidada zona de repartição de competências onde os tribunais aferirão apenas se os princípios jurídicos foram respeitados. (pp 44 e 45)

Marcelo Rebelo de Sousa identifica em primeiro lugar a margem de livre decisão como elemento da actuação administrativa que fica de fora do controlo judicial quando em causa estão apenas razões de mérito. Dentro desta encontra-se a margem de livre apreciação que se reflete na atribuição à Administração de uma capacidade avaliativa dos pressupostos que compõem cada actuação, cada tomada de decisão. E será aqui dentro que encontramos os conceitos indeterminados como elementos interpretativos das normas que nos permitam chegar, ou não, à margem de livre decisão, ou seja se fogem, ou não, ao controlo jurisdicional. Este autor considera de facto difícil encontrar um critério que nos permita separar uns elementos de outros, propondo, então, três distinções:
·       Se estivermos perante uma interpretação meramente linguística (à semelhança da subsunção) não há margem de livre apreciação;
·       Os casos em que o controlo jurisdicional implicaria uma usurpação do poder administrativo em clara violação da separação de poderes, havendo então lugar àquela margem;
·       Os casos em que os direitos fundamentais dos particulares sejam atingidos dando, portanto, aos tribunais poder para controlar a actuação administrativa, afastando assim a margem de livre apreciação.

Resumidamente, parece-nos que no primeiro ponto acima descrito, Marcelo Rebelo de Sousa se aproxima da nossa consideração sobre o método de interpretação vinculativo, bem como os seus resultados no caso concreto. Depois, nos pontos seguintes, acaba por fazer uma distinção semelhante à dos dois autores anteriormente analisados, ou seja: as práticas administrativas, no âmbito do preenchimentos dos conceitos indeterminados, apenas são susceptíveis de controlo jurisdicional quando em causa esteja a violação da legalidade na vertente do respeito pelos princípios jurídico-administrativos. Nunca por razões de mérito. Esta é também a nossa posição.  

Olhemos então agora para a outra formação teórica aqui em causa. A Discricionariedade Imprópria é uma construção doutrinária divisiva composta por três realidades: a discricionariedade técnica (fundamentada por pareceres técnicos e no respeito dos princípios jurídico-administrativos), a justiça burocrática (a realização de juízos valorativos como o será uma avaliação) e a liberdade probatória (a apreciação dos meios de prova necessários no âmbito do procedimento).  São três tipos de situações que representam para alguns autores uma espécie de poder vinculado em escolher a melhor – ou a única – opção que realmente prossegue da melhor maneira o interesse público. Vejamos então o que dizem sobre isso.

Freitas do Amaral, usa a discricionariedade técnica para, em representação das outras duas situações, nos demonstrar que alterou a sua opinião em relação a este aspecto. Enquanto antes afirmava que perante duas situações tecnicamente idênticas uma teria de ser, num dado local e momento, a mais correcta, hoje considera que apesar de não haver uma liberdade de escolha entre as várias opções possíveis, há um poder-dever jurídico de escolher a melhor solução possível, não sendo esta, no entanto, anulável em tribunal com base no seu mérito. Este autor diz-nos então que não existe discricionariedade imprópria uma vez que toda a actuação discricionária da Administração deve conseguir encerrar em si uma única decisão válida. No fundo, como se a definição de toda a discricionariedade fosse aquela que é dada, em geral, à discricionariedade imprópria. (pp. 82 e 83).    

No sentido inverso parece ir Marcelo Rebelo de Sousa ao considerar a discricionariedade técnica como simples discricionariedade. Assim, e tendo em conta que os juízes se auxiliam cada vez mais de peritos para ultrapassar limitações próprias, os tribunais estão menos restringidos no controlo jurisdicional que podem fazer quando está em causa este tipo de discricionariedade. Para este professor apenas surge um dever vinculado quando “as normas extra-jurídicas para as quais a lei remete admitirem como válida apenas uma” solução. (p. 181).

Já Vieira de Andrade qualifica como discricionariedade as prerrogativas administrativas de avaliação – entre as quais encontramos a justiça administrativa em representação da discricionariedade imprópria – sujeitas a fiscalização por parte do juiz no âmbito da repartição de competências já mencionada no caso do preenchimento dos conceitos indeterminados (pp. 47 e 48)

Em qualquer um dos casos analisados acima, o que interessa realmente saber é se o tribunal pode ou não anular uma decisão administrativa. Como Vieira de Andrade, achamos que este problema coloca-se no âmbito das relações tripolares entre Lei, Administração e Juiz (p. 43). Assim, defendemos então que a discricionariedade imprópria não existe uma vez que não passa de simples discricionariedade e que, em relação aos conceitos indeterminados, reconhecemos como justa a distinção entre uns elementos mais objectivos, capazes de controlo; e outros subjectivos que apenas podem ser avaliados em sede jurisdicional pelo respeito à legalidade e aos princípios do Direito em geral e do direito administrativo em particular.

Como podemos ver através de toda a exposição acima, a definição de discricionariedade não é, certamente, vinculada.


Bibliografia:
Diogo Freitas do Amaral – Curso de Direito Administrativo Vol. II, edição de 2001, Coimbra
Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos – Direito Administrativo Geral Tomo I, Lisboa 2009
José Carlos Vieira de Andrade – Lições de Direito Administrativo, 2ª ed., Coimbra 2011

Francisco Vasconcelos - 26558

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