sexta-feira, 6 de maio de 2016

O PODER DISCRICIONÁRIO


     Esta publicação, pretende abordar a temática da discricionariedade da administração pública na vertente de acção militar, onde o poder discricionário se torna uma forma de tomada de decisões que abarca um vasto leque de interpretações, e que em muito acaba por prejudicar os militares, que tomam as decisões superiores como ordens legitimamente emanadas e a serem cumpridas, e não como decisões da administração, passiveis de constituírem ilegalidades, e de serem contestadas em sede própria.
     Pretendo demonstrar um caso que configura um exemplo daquilo que se pode enquadrar numa violação grave dos direitos, neste caso dos militares, face às decisões tomadas pela Administração, neste caso, pelo Comandante Geral dos aludidos militares.
     Como disposições legais, que ajudam a compreender de uma forma global o caso, temos.
- Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo decreto – lei n.º 297/2009, de 14 de Outubro.
- Decreto-lei n.º 159/2005, de 20 de Setembro, que estabelece o regime transitório para a situação de reserva e reforma dos militares da Guarda Nacional Republicana.
- Lei n.º 7-a/2016 de 30 de Março, que aprova o orçamento de estado para o ano de 2016.
- O Decreto-Lei n.º 214-F/2015, de 2 de Outubro, que clarifica a interpretação das normas constantes do regime transitório definido no Decreto-Lei n.º 159/2005, de 20 de Setembro.



     O Estatuto dos Militares da GNR, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 297/2009, de 14 de Outubro, refere como condições de passagem à reserva:
“Artigo 85.º
Condições de passagem à reserva
1 - Transita para a situação de reserva o militar da Guarda na situação de activo que preencha as seguintes condições:
a) Atinja o limite de idade estabelecido para o respectivo posto; ou
b) Tendo prestado 20 ou mais anos de serviço, a requeira e esta lhe seja concedida; ou
c) O declare, depois de completar 55 anos de idade e 36 anos de serviço. 2 - A passagem de um militar à situação de reserva é da competência do comandante-geral da Guarda.”

     O Decreto-Lei n.º 214-F/2015, de 2 de Outubro, clarifica que relativamente aos militares da GNR, são aplicáveis as condições de transição para a situação estatutária de reserva e de reforma, do regime de reforma e do cálculo da respectiva pensão, nos mesmos termos definidos para os militares das Forças Armadas.
     Clarifica ainda que beneficiam do regime consagrado nas referidas disposições transitórias os militares da Guarda Nacional Republicana que, em 31 de Dezembro de 2005, tinham 20 ou mais anos de serviço militar, independentemente de quaisquer outros requisitos.
     Por último, refere que os militares da Guarda Nacional Republicana que, reunindo as condições de passagem à reserva ou reforma em 31 de Dezembro de 2005, que tenham transitado para as situações de reserva ou reforma ao abrigo dos referidos regimes transitórios, têm o direito de passar à reforma, sem redução de pensão, nos termos vigentes àquela data. Ou seja, não sofre quaisquer penalizações aplicáveis às pensões de aposentação antecipada, aplicando-se a fórmula de cálculo nos termos vigentes em 31 de Dezembro de 2005.

     Vejamos o que diz o artigo 2.º do Decreto-Lei 214-F/2015.
“Artigo 2.º
Passagem à reserva e reforma
1.                          O regime previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 85.º e no n.º 9 do artigo 189.º do Estatuto dos Militares das Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 297/2009, de 14 de Outubro, mantém -se em vigor até 31 de Dezembro de 2016 para os militares da Guarda que completem ou tenham completado 20 anos de tempo de serviço militar entre 1 de Janeiro de 2006 e a data da entrada em vigor do presente decreto-lei.”

     Antes de entrar mais profundamente no caso, é importante um enquadramento histórico e factual, dos circunstancialismos em que se deram o nascimento das disposições legais, que permitiram a estes militares a sua passagem para a situação de reserva, em regime transitório.   
     O Decreto-Lei n.º 214-F/2015, recordemos, trata-se de um diploma legal que veio clarificar, aquilo que ao longo de quase uma década tem suscitado dúvidas interpretativas, gerando situações de desigualdade entre o tratamento dado aos militares da Guarda Nacional Republicana e aos militares das Forças Armadas.
     Não obstante a especial importância da entrada em vigor deste Decreto-Lei, não se deixa de poder dar uma especial conotação às circunstâncias da entrada em vigor do mesmo, na medida em que este foi anunciado já na fase final do mandato último governo, por volta das 17 horas, quando às 18H00 estava anunciada uma grande manifestação de polícias, onde se sabia de antemão que os militares da GNR estariam em força, a fim de reivindicar as mencionadas clarificações, entre outras revindicações.
     Tal decisão política, ao colocar em vigor o Decreto-Lei n.º 214-F/2015, clarificando as dúvidas existentes, permitiu que se colocassem milhares de militares numa situação em que tinham as condições para a passagem à situação de reserva, não acautelando a tutela, que com essa decisão, as fileiras da Guarda Nacional Republicana ficariam desfalcadas em termos de efectivo operacional.
     Essa situação da saída antecipada de efectivo da GNR, somado ao facto de que os concursos de abertura para vagas a atribuir à GNR têm vindo ano após ano a diminuir, levam a instituição a um decréscimo considerável de efectivo operacional, que, das duas uma, por um lado não foi previsto pela tutela, ou por outro lado, eventualmente teria sido previsto pela tutela, mas que seria um mal menor, comparado com uma manifestação de polícias a pouco dias das eleições.
     Aparte a análise política das circunstâncias factuais da entrada em vigor do citado diploma, seguimos para a matéria de facto, a qual me propus a debater nesta abordagem.
     Face ao exposto, os militares cujas condições para a passagem à reserva eram as exigidas pelo Decreto-Lei n.º 214-F/2015, colocaram o seu requerimento ao Exm.º General Comandante Geral nos seguintes termos:
     “O militar (…) que se enquadram nas condições acima referidas, requerem assi m, nos termos das alíneas b), c) e e) do artigo 285.º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei 297/09 de 14 de Outubro, com as alterações introduzidas pela Declaração de Retificação nº 92/2009 de 27 de Novembro, conjugado com os n.ºs 3, 5 e 10 do art.º 2º do Decreto-Lei n.º 214-F/2015 de 02 de Outubro de 2015 e conjugado com a alínea d) do n.º 2 do artigo 86.º da Lei n.º 82-B/2014, requerer a V.Ex.ª, a passagem à situação de reserva, desde 1 de Julho de 2016.”

NUMA PRIMEIRA DECISÃO
     O Comandante Geral da GNR, ao deparar-se com os milhares de requerimentos que lhe foram apresentados ao longo dos dias após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 214-F/2015, começou por indeferir os mesmos, alegando várias ordens de razões, tomando inclusive decisões feridas de ilegalidades, pois vejamos.
     Face aos pedidos de passagem à reserva dos militares da GNR, os quais fizeram o seu pedido com base em sustentações legais, o Comandante Geral, indeferiu os mesmos pedidos, fundamentando esse mesmo indeferimento com base no facto de que a guarda ficaria desprovida de parte do efectivo e que por tal motivo não poderia deixar que todos os militares que colocassem o respectivo requerimento de passagem à reserva, que passassem a essa situação.
     Neste caso, poderíamos considerar que se pudesse colocar em causa o princípio da prossecução do interesse público, na medida em que estaria em causa o bem comum, ou seja, a segurança da comunidade em geral, de uma necessidade colectiva de segurança.
     Abordando o tema da prossecução do interesse público segundo Rogério Soares, e mencionado pelo Professor Freitas do Amaral em Curso de Direito Administrativo – Volume II, no qual separa o interesse público primário do interesse público secundário, não se crê, que neste caso em particular, os órgãos governativos do Estado, no desempenho das suas funções política e legislativa, tivessem protegido, definido ou satisfeito o bem comum, como lhes competia, na prossecução do interesse público primário, na medida em que não previram que tal decisão legislativa, comportaria para a instituição GNR, perdas significativas de efectivo operacional.

     O Estatuto dos Militares da GNR, refere no seu artigo 6.º.
“Artigo 6.º
Princípios fundamentais
1-                          O militar da Guarda, no exercício das suas funções, está exclusivamente ao serviço do interesse público, tal como é definido na lei ou, com base nela, pelos órgãos competentes.
2-                          (…)”


     Ou seja, é a lei que define esse interesse público que está a cargo da Administração, não podendo ser a Administração de defini-lo, salvo se a lei a habilitar para o efeito.
     Neste caso, apenas um acto definido como interesse público definido por lei, poderia constituir qualquer motivo principalmente determinante para a tomada de decisão por parte do Comandante Geral da GNR.
     Não me parecendo ser esse o caso, pois não foi exposto nenhuma disposição legal que sustentasse a prática de um acto com base no interesse público, este acto parece-me estar viciado por desvio de poder, tornando-se por esta via, num acto ilegal e inválido.
     Mais, neste caso em que o Comandante da GNR indefere os requerimentos apresentados, e sustentados em base legal, pelos militares da GNR, de uma forma não sustentada em qualquer disposição legal, fá-lo num total desrespeito ao principio da legalidade, principio esse que, segundo o Professor Freitas do Amaral, a Administração Pública existe e funciona para prosseguir o interesse público, mas tem de prosseguir esse interesse público em obediência à lei.
     Sobre a importância que deve ser dada ao princípio da legalidade, transcrevo as palavras do Professor Freitas do Amaral - Curso de Direito Administrativo - Volume II, quando refere que “… na actualidade e no direito português, são duas as funções do princípio da legalidade: por um lado, ele tem a função de assegurar o primado do poder legislativo sobre o poder executivo, porque o primeiro emana da soberania popular e a representa, enquanto o segundo é meramente detentor de uma autoridade derivada e secundária; por outro lado, desempenha também a função de garantir os direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares que o estado social de Direito não pode deixar de respeitar e proteger em toda a linha.”.
     Em conclusão, no meu entendimento, ao ser indeferido o pedido dos militares, foi violado, para além do princípio da prossecução do interesse público, o princípio da legalidade, nas duas modalidades, seja na modalidade de preferência de lei, na medida em que o despacho de indeferimento do Comandante da GNR contrariou o bloco da legalidade, que era dado pelas disposições legais acima descritas, o que torna esse acto ilegal, seja na modalidade de reserva de lei, pois tratou-se de um acto praticado sem qualquer fundamento na base legal.

     Existem excepções ao princípio da legalidade, que poderíamos eventualmente equacionar no caso, nomeadamente a teoria do estado de necessidade, a teoria dos actos políticos e a teoria do poder discricionário da administração. Relativamente aos dois primeiros, não se parece que se possam enquadrar no caso, mas vamos analisar a teoria do poder discricionário.
     Segundo o professor Freitas do Amaral, esta teoria do poder discricionário da Administração, na realidade não constitui nenhuma excepção ao princípio da legalidade, referindo que só há poderes discricionários onde a lei os confere como tais, tendo em conta dois elementos vinculados por lei, a competência e o fim.
     Não havendo, assim, no poder discricionário da Administração, qualquer excepção ao princípio da legalidade.
     Este acto administrativo contraria um acto legislativo, e irá ser um acto anulável, pois trata-se de uma violação à lei, dando a sua anulabilidade nos termos do art.º 163.º do Código de Procedimento Administrativo.

SEGUNDA DECISÃO
     Não obstante a forma como foi dada resposta a uma solicitação com bases legais por parte dos militares, o Comandante Geral da GNR, por sua iniciativa entendeu ainda que deveria dar prioridades na passagem à reserva, a alguns dos militares que apresentassem as condições de passagem à reserva, mas apenas àqueles que fossem Coronéis, Sargentos-mor ou Cabos-mor.
     Os postos acima referidos, são referentes ao topo das carreiras de Oficiais, Sargentos e Praças, respectivamente.
     A uma primeira vista, não me pareceu a decisão mais justa, no sentido em que não prima pelo princípio de igualdade, pois basta termos em conta que existem por exemplo Tenentes-coronéis, Sargentos-chefe, ou Cabos-Chefe com as mesmas condições de passagem à reserva, e que só porque não atingiram o posto superior, são preteridos na sua passagem à reserva.
     De salientar que a maior parte desses militares, sendo do mesmo alistamento, apresentam o mesmo numero de anos de serviço militar, e nalguns casos ate a mesma idade, havendo apenas diferença no posto hierárquico, posto esse que não faz referência em nenhuma disposição legal, como condição de passagem à reserva.
     Analisando a fundo esta segunda decisão, parece-nos que o princípio da igualdade não foi de todo respeitado, na medida em que militares com condições legais de passagem à reserva, têm tratamentos diferenciados, relativamente a outros em iguais circunstâncias.
     Segundo o professor Freitas do Amaral, o princípio da igualdade, requer que se trate de modo igual o que é juridicamente igual, e de modo diferente o que é juridicamente diferente, proibindo a discriminação e obrigando a diferenciação.
     Ou seja, neste caso em que as condições de passagem à reserva dos militares se encontram devidamente definidas, quase de forma matemática, e que só podem ir para essa situação os militares que cumprem escrupulosamente aquelas condições, não há como existir duas formas de decidir, quando ambos os requerentes estão em igualdade de circunstâncias, face ao requerido pelo diploma legal.
     Nestes termos, existem sérias violações legais na tomada da decisão por parte do Comandante Geral, o qual não actuou no sentido do princípio da legalidade, previsto no art.º 3.º n.º 1 do Código de Procedimento Administrativo.
     Também o princípio da igualdade, constitucionalmente previsto no Art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa, e no art,º 6.º do Código de Procedimento Administrativo, não foram respeitados, na medida em que situações idênticas, e que mereciam tratamento igual, acabaram por ter decisões diferenciadas.

José Marques
FDUL - Aluno 24674

Sem comentários:

Enviar um comentário