(Nota: as páginas indicadas referem-se sempre às monografias dos respectivos autores mencionados, constantes na bibliografia em fim de artigo)
Considerando o tipo de Estado actual, o Estado pós-social onde a
Administração é caracterizada por ser prestadora e sujeita de relações
multilaterais e em colaboração com os particulares, encontramos no epicentro da
sua actuação o procedimento administrativo. Este, está logo definido no artigo
1º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) e é um elemento essencial
para o respeito pela legalidade próprio de um Estado de Direito, estando consagrado
como exigência constitucional na primeira parte do artigo 267º/5 da
Constituição da República Portuguesa (CRP).
Nesse mesmo artigo 267º/5 da CRP encontramos, na sua segunda parte, a
protecção do direito de participação dos particulares, corolário do princípio
da democracia participativa defendido logo no artigo 2º da mesma CRP. Este
consubstancia-se em variadas aplicações práticas incluindo, nos termos do
procedimento administrativo, o direito de audiência prévia que resulta dos
artigos 11º/1 e 12º do CPA enquanto princípio; do art. 80º no que toca à
conferência procedimental; do art. 100º em termos de regulamento; e dos arts.
121º a 125º em relação ao acto administrativo.
O acto administrativo (definido em termos substanciais nos arts. 148º e
seguintes e regulado em termos procedimentais nos arts. 102º e seguintes
do CPA) representa não só, em termos materiais, uma decisão final tomada pela
Administração bem como, num sentido mais instrumental, todas as acções e
formalidades tomadas ao longo de um processo de decisão, essenciais para o
devido respeito da constitucionalidade e da legalidade. Esta última ideia leva
até à consideração de que mais importante que o acto enquanto decisão final é o
respeito pelo procedimento.
São várias as fases de importância maior quando estamos a percorrer o
procedimento administrativo do acto, cada qual com as suas vicissitudes, mas
que não vamos analisar aqui com excepção óbvia do tema em discussão: a
audiência prévia dos interessados.
São consagrados cinco artigos do CPA a esta fase do procedimento e a
falta de audiência prévia não resulta apenas numa ilegalidade uma vez que nos
termos do art. 124º encontramos um conjunto de situações que permitem a sua
dispensa. No entanto pode dar-se o caso de pura e simplesmente existir um
desrespeito a este princípio e dar-se a sua falta em sentido formal e/ou
material (situação em que o conteúdo da audiência não é tido em conta na tomada
de decisão que conclui o procedimento – uma situação muito difícil de provar
contenciosamente e não tomado em conta neste trabalho mas podendo
aplicar-se-lhe as mesmas conclusões por extensão).
Qual é então o desvalor jurídico aplicável ao
acto administrativo carecido da formalidade da audiência prévia dos
interessados?
O professor Freitas do Amaral começa por enaltecer a audiência prévia,
chamando-lhe a pequena revolução trazida pela CRP ao procedimento
administrativo – elemento que o transformou de trifásico em quadrifásico –
avisando, ao mesmo tempo, para os inconvenientes de uma administração não
participada (pp. 317 e 318). Quanto à sua falta, considera que estamos perante
um vício de forma que põe em causa uma formalidade essencial e defende a
anulabilidade, uma vez que não considera que este seja um direito fundamental
ao nível daqueles mais directamente ligados à protecção da pessoa humana,
concretizando a sua tese com o facto de esta ser a jurisprudência seguida pelo
Supremo Tribunal Administrativo (STA).
No mesmo sentido vai Pedro Machete, que, citado por jurisprudência do
STA, defende que o direito à audiência prévia não é directamente imposto pelo
art. 267º/5 da CRP, sendo a ratio legis desta norma o de promover a
participação dos particulares em termos gerais no procedimento administrativo,
cabendo ao legislador ordinário a faculdade de disciplinar a sua forma. Assim
sendo, na falta de audiência prévia, estamos sempre perante uma ilegalidade e
não uma inconstitucionalidade resultante da interpretação da norma do art.
161º/2, d) sobre o regime da nulidade (acórdãos da STA analisados: Processo
01398/14 de 25/02/2015 tendo como relator Fonseca Carvalho e Processo 0262/15
de 14/05/2015 onde foi relator Francisco Rothes).
Por outro lado, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos consideram
este instituto como concretizador de um princípio constitucional e rejeitam as
alegações do STA que na sua jurisprudência indica, nas palavras destes autores,
a degradação do princípio da audiência prévia de essencial em não essencial e o
princípio do aproveitamento dos actos administrativo (interpretação retirada
das várias alíneas do art. 163º/5 do CPA) (pp. 129 e 130).
Seguindo a mesma orientação, Vasco Pereira da Silva classifica o direito
à audiência dos interessados como um princípio fundamental análogo aos
presentes no art. 266º/2 da CRP cominando a sua falta na sanção mas grave para
o acto administrativo: a nulidade nos termos do art. 161º/2, d) do CPA. Ao
mesmo tempo, recorre-se da cláusula aberta indicada no art. 16º/1 da CRP para
alargar à classificação de direito fundamental aquele que está previsto no art.
267º/5 da norma fundamental (p. 430). Finalmente, e nas palavras deste
professor, a lei que prevê a dispensa de audiência prévia (art. 124º do CPA) é,
portanto, inconstitucional.
Como visto através da análise da doutrina acima exposta, denotamos que
este problema se insere, sem margem para dúvidas, na qualificação do direito à
audiência prévia dos interessados como um direito fundamental, equiparado aos
demais, ou não.
Pode parecer que a Administração Pública ao tomar uma decisão sem
recorrer a este direito o faz para esconder uma qualquer tomada de decisão.
Segundo Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos esta não pode actuar de
forma escondida, secreta, tendo de haver prova de que alguém ouviu e foi
ouvido por forma a evitar “decisões surpresa” (p. 127). No entanto,
o dever especial de publicação e notificação dos arts. 158º a 160º do CPA
obrigam a Administração a dar conhecimento dos seus actos aos
intervenientes ou destinatários interessados, surgindo depois na esfera
jurídica destes o direito à impugnação.
Consideramos também que está em causa a segurança jurídica dos efeitos
produzidos e, se ninguém puser em causa o acto em concreto, este não causou
danos.
Finalmente, não alinhamos com Vasco Pereira da Silva
ao considerar a norma que preveja a dispensa de audiência dos interessados como
inconstitucional e achamos que se o direito à audiência prévia pode ser desse
modo afastado – como o faz o art. 124º do CPA – não será este um direito
fundamental dos mais importantes, daí existirem as várias as classificações que
conferem uma ordem de importância a este tipo de direitos cruciais para o
Estado de direito democrático. É verdade que todos os direito fundamentais
podem ser afastados, mas os mais importantes apenas em casos de extrema
excepção, como são as situações de estado de sítio ou de emergência, ou as
situações de guerra.
Bibliografia:
Vasco Pereira da Silva – Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Coimbra,
1996
Diogo Freitas do Amaral – Curso de Direito Administrativo Vol. II, edição
de 2001, Coimbra
Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos – Direito Administrativo
Geral Tomo III, Lisboa, 2009
http://www.stadministrativo.pt/
Francisco Vasconcelos - 26558
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