sábado, 21 de maio de 2016

O Desvalor da Falta de Audiência Prévia no Acto Administrativo

(Nota: as páginas indicadas referem-se sempre às monografias dos respectivos autores mencionados, constantes na bibliografia em fim de artigo)


Considerando o tipo de Estado actual, o Estado pós-social onde a Administração é caracterizada por ser prestadora e sujeita de relações multilaterais e em colaboração com os particulares, encontramos no epicentro da sua actuação o procedimento administrativo. Este, está logo definido no artigo 1º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) e é um elemento essencial para o respeito pela legalidade próprio de um Estado de Direito, estando consagrado como exigência constitucional na primeira parte do artigo 267º/5 da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Nesse mesmo artigo 267º/5 da CRP encontramos, na sua segunda parte, a protecção do direito de participação dos particulares, corolário do princípio da democracia participativa defendido logo no artigo 2º da mesma CRP. Este consubstancia-se em variadas aplicações práticas incluindo, nos termos do procedimento administrativo, o direito de audiência prévia que resulta dos artigos 11º/1 e 12º do CPA enquanto princípio; do art. 80º no que toca à conferência procedimental; do art. 100º em termos de regulamento; e dos arts. 121º a 125º em relação ao acto administrativo.

O acto administrativo (definido em termos substanciais nos arts. 148º e seguintes e regulado em termos procedimentais nos arts. 102º e seguintes do CPA) representa não só, em termos materiais, uma decisão final tomada pela Administração bem como, num sentido mais instrumental, todas as acções e formalidades tomadas ao longo de um processo de decisão, essenciais para o devido respeito da constitucionalidade e da legalidade. Esta última ideia leva até à consideração de que mais importante que o acto enquanto decisão final é o respeito pelo procedimento.

São várias as fases de importância maior quando estamos a percorrer o procedimento administrativo do acto, cada qual com as suas vicissitudes, mas que não vamos analisar aqui com excepção óbvia do tema em discussão: a audiência prévia dos interessados.

São consagrados cinco artigos do CPA a esta fase do procedimento e a falta de audiência prévia não resulta apenas numa ilegalidade uma vez que nos termos do art. 124º encontramos um conjunto de situações que permitem a sua dispensa. No entanto pode dar-se o caso de pura e simplesmente existir um desrespeito a este princípio e dar-se a sua falta em sentido formal e/ou material (situação em que o conteúdo da audiência não é tido em conta na tomada de decisão que conclui o procedimento – uma situação muito difícil de provar contenciosamente e não tomado em conta neste trabalho mas podendo aplicar-se-lhe as mesmas conclusões por extensão).

Qual é então o desvalor jurídico aplicável ao acto administrativo carecido da formalidade da audiência prévia dos interessados?

O professor Freitas do Amaral começa por enaltecer a audiência prévia, chamando-lhe a pequena revolução trazida pela CRP ao procedimento administrativo – elemento que o transformou de trifásico em quadrifásico – avisando, ao mesmo tempo, para os inconvenientes de uma administração não participada (pp. 317 e 318). Quanto à sua falta, considera que estamos perante um vício de forma que põe em causa uma formalidade essencial e defende a anulabilidade, uma vez que não considera que este seja um direito fundamental ao nível daqueles mais directamente ligados à protecção da pessoa humana, concretizando a sua tese com o facto de esta ser a jurisprudência seguida pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA).

No mesmo sentido vai Pedro Machete, que, citado por jurisprudência do STA, defende que o direito à audiência prévia não é directamente imposto pelo art. 267º/5 da CRP, sendo a ratio legis desta norma o de promover a participação dos particulares em termos gerais no procedimento administrativo, cabendo ao legislador ordinário a faculdade de disciplinar a sua forma. Assim sendo, na falta de audiência prévia, estamos sempre perante uma ilegalidade e não uma inconstitucionalidade resultante da interpretação da norma do art. 161º/2, d) sobre o regime da nulidade (acórdãos da STA analisados: Processo 01398/14 de 25/02/2015 tendo como relator Fonseca Carvalho e Processo 0262/15 de 14/05/2015 onde foi relator Francisco Rothes).

Por outro lado, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos consideram este instituto como concretizador de um princípio constitucional e rejeitam as alegações do STA que na sua jurisprudência indica, nas palavras destes autores, a degradação do princípio da audiência prévia de essencial em não essencial e o princípio do aproveitamento dos actos administrativo (interpretação retirada das várias alíneas do art. 163º/5 do CPA) (pp. 129 e 130).

Seguindo a mesma orientação, Vasco Pereira da Silva classifica o direito à audiência dos interessados como um princípio fundamental análogo aos presentes no art. 266º/2 da CRP cominando a sua falta na sanção mas grave para o acto administrativo: a nulidade nos termos do art. 161º/2, d) do CPA. Ao mesmo tempo, recorre-se da cláusula aberta indicada no art. 16º/1 da CRP para alargar à classificação de direito fundamental aquele que está previsto no art. 267º/5 da norma fundamental (p. 430). Finalmente, e nas palavras deste professor, a lei que prevê a dispensa de audiência prévia (art. 124º do CPA) é, portanto, inconstitucional.

Como visto através da análise da doutrina acima exposta, denotamos que este problema se insere, sem margem para dúvidas, na qualificação do direito à audiência prévia dos interessados como um direito fundamental, equiparado aos demais, ou não.

Pode parecer que a Administração Pública ao tomar uma decisão sem recorrer a este direito o faz para esconder uma qualquer tomada de decisão. Segundo Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos esta não pode actuar de forma escondida, secreta,  tendo de haver prova de que alguém ouviu e foi ouvido por forma a evitar “decisões surpresa” (p. 127). No entanto, o dever especial de publicação e notificação dos arts. 158º a 160º do CPA obrigam a Administração a dar conhecimento dos seus  actos aos intervenientes ou destinatários interessados, surgindo depois na esfera jurídica destes o direito à impugnação.

Consideramos também que está em causa a segurança jurídica dos efeitos produzidos e, se ninguém puser em causa o acto em concreto, este não causou danos.

Finalmente, não alinhamos com Vasco Pereira da Silva ao considerar a norma que preveja a dispensa de audiência dos interessados como inconstitucional e achamos que se o direito à audiência prévia pode ser desse modo afastado – como o faz o art. 124º do CPA – não será este um direito fundamental dos mais importantes, daí existirem as várias as classificações que conferem uma ordem de importância a este tipo de direitos cruciais para o Estado de direito democrático. É verdade que todos os direito fundamentais podem ser afastados, mas os mais importantes apenas em casos de extrema excepção, como são as situações de estado de sítio ou de emergência, ou as situações de guerra.


Bibliografia:
Vasco Pereira da Silva – Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Coimbra, 1996
Diogo Freitas do Amaral – Curso de Direito Administrativo Vol. II, edição de 2001, Coimbra
Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos – Direito Administrativo Geral Tomo III, Lisboa, 2009
http://www.stadministrativo.pt/

Francisco Vasconcelos - 26558

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