O Princípio da Inderrogabilidade Singular dos Regulamentos
Ao
iniciar a nossa temática, em primeira instância convém esclarecer o conceito de
regulamento administrativo. Como refere Freitas do Amaral (2014), os
regulamentos administrativos são “as normas jurídicas emanadas no exercício do
poder administrativo por um órgão da Administração ou por outra entidade
pública ou privada para tal habilitada por lei.”. Através de uma breve
interpretação ao conceito, deduzem-se três elementos imprescindíveis. O primeiro
é o elemento material que remete para as normas jurídicas que deverão ser
gerais, aplicando-se a uma pluralidade de destinatários e, abstratas,
estendendo-se a todas as situações da vida que se subsumirem à norma. Em
seguida, apresenta-se o elemento orgânico que, por sua vez, realça quem produz
as ditas normas, sendo os intervenientes em princípio os órgãos da
administração. Por fim, temos o elemento funcional, em que o regulamento é
produzido no exercício do poder administrativo. A propósito deste elemento sublinha-se,
por exemplo, o governo pelo facto de possuir competências no exercício da
função política, legislativa e administrativa. Deste modo, só será regulamento
administrativo se o governo prosseguir as suas atribuições administrativas ao
abrigo do disposto pela CRP e pela lei, o que pressupõe conhecermos a sua
relação com a lei. Neste âmbito, os regulamentos não podem contrariar a lei, o
primado da lei compreende a sua absoluta prevalência. O artigo 3.º do CPA
reporta também o direito no seu conjunto, “ […] devem atuar em obediência à lei
e ao direito, […] ”, o que traduz um entendimento amplo da legalidade. Além
disso, os regulamentos não podem tratar de matérias reservadas a atos
legislativos, o que induz a reserva de lei, e têm o seu fundamento numa lei de
habilitação, o que transparece a precedência de lei prevista no artigo 136.º do
CPA e no artigo 112.º, n.º 7, da CRP. No artigo 135.º do CPA, o legislador
procedeu à definição do regulamento. Na parte final do respetivo artigo, o
legislador apenas menciona a sua eficácia jurídica externa para efeitos do
disposto no respetivo código. Neste contexto, os regulamentos são externos
quando projetam os seus efeitos jurídicos para fora da Administração que os
emana. A título exemplificativo, ao abrigo do artigo 199.º, alínea c) da CRP, o
Secretário de Estado Adjunto do Ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional,
no exercício da competência que lhe foi delegada nos termos do despacho n.º
8918/2013, de 6 de junho, determinou no despacho normativo n.º 19-A/2015 a
aprovação do Regulamento do Programa Escolhas. O despacho normativo é um
regulamento que normalmente provém de um Ministro em nome do seu Ministério e
não em nome do Governo. Neste caso a competência foi delegada pelo despacho n.º
8918/2013 através de um ato administrativo. Com efeito, se for aprovada uma
Resolução do Conselho de Ministros relativamente ao Programa Escolhas, esta irá
prevalecer sobre o despacho normativo n.º 19-A/2015 (artigo 138.º, n.º 3, do
CPA).
O
Programa Escolhas visa desenvolver medidas, programas e ações no domínio da
inclusão social de crianças e jovens provenientes de contextos socioeconómicos
mais vulneráveis, em particular dos descendentes de imigrantes e grupos
étnicos, detendo ainda outros objetivos como a educação ou a empregabilidade.
Consequentemente, este regulamento é uma referência de eficácia externa tendo
como participantes diretos as crianças e outras pessoas numa faixa etária até
aos trinta anos, que se encontrem nas condições indicadas, bem como os seus
familiares. Além disso, visa produzir efeitos jurídicos em relação às
instituições que venham a ser parceiras ou promotoras para a prossecução dos
fins visados. Atendendo ao Princípio da Inderrogabilidade Singular dos Regulamentos,
constatamos que os regulamentos externos vinculam tanto os particulares como a
própria Administração que os editou. Os regulamentos podem ser interpretados,
suspensos, modificados ou revogados pelos órgãos competentes para a sua emissão
(artigos 142.º,n.º 1, e 146.º do CPA), o que já não lhes é permitido é, em
regra, desaplicar normas regulamentares em casos isolados. As normas
regulamentares são, assim, caraterizadas por uma força jurídica autovinculativa,
pelas quais os órgãos da Administração e os particulares ficam juridicamente
sujeitos ao seu cumprimento futuro, excluindo-se a livre recusa de aplicação de
um regulamento aliada ao facto de constituir-se como fonte de direito e em
virtude do respeito pelos princípios de segurança jurídica. Por força do Princípio
da Inderrogabilidade Singular dos Regulamentos, um dado regulamento
administrativo não pode ser afastado por atos administrativos de índole
individual e concreto (artigo 142.º, n.º 2, do CPA). Caso sucedesse, o ato
administrativo seria ilegal pela circunstância de ter violado o regulamento. No
seguimento do que vem a ser dito, o Princípio da Inderrogabilidade Singular dos
Regulamentos não permite à Administração afastar pela via individual e concreta
os regulamentos que ela própria criou enquanto não forem excluídos da ordem
jurídica, reflexo de um bloco de juridicidade a que a Administração deve
obediência para garantir a legalidade das suas ações. Aliás, como indicou Afonso
Queiró (1976), segundo o princípio objeto de estudo, “A Administração está
vinculada a aplicar o regulamento em concreto, mesmo que a norma regulamentar
seja inválida por afrontar uma fonte normativa superior – seja ela a
constituição, a lei ou outro regulamento.”. Desta forma, estaríamos perante uma
posição fechada e os regulamentos teriam de ser sempre acatados pela
Administração e pelos particulares. Porém, o que sucede é que o Supremo
Tribunal Administrativo não adota uma posição totalmente fechada, admitindo
exceções ao Princípio da Inderrogabilidade Singular dos Regulamentos. No Acórdão
do Supremo Tribunal Administrativo, de 17-01-2013, processo 0691/12, mencionou-se
que as exceções relacionam-se com a prática de crimes, a salvaguarda de
direitos fundamentais, a inexistência jurídica do regulamento ou, quando muito,
a circunstância de o regulamento padecer de uma nulidade suficientemente
agravada.
Na
primeira exceção, caso o vício regulamentar possa determinar a prática de um
crime como, por exemplo, o crime por violação das regras urbanísticas por um
funcionário, previsto e punido pelo artigo 382.º-A do Código Penal, deve
permitir-se que órgão administrativo tenha imediatamente competência para
afastar a respetiva aplicação ao caso concreto. No que respeita à segunda
exceção, ficcionaríamos que, na aprovação do Regulamento do Programa Escolhas
algumas normas regulamentares permitissem o condicionamento da liberdade de
imprensa em relação a crimes de imigrantes, por forma a não fomentar a
desintegração social dos seus descendentes. Também aqui o órgão administrativo
deveria poder afastar a sua aplicação. Ainda assim, os direitos fundamentais detêm um grande elenco que do ponto de vista prático poderia ser levado ao excesso, o que dificulta a sua natureza excecional na totalidade. Na última exceção, referenciamos uma
situação de inexistência jurídica de um regulamento, imaginando um determinado
decreto regulamentar cuja promulgação não tenha sido objeto de referenda
ministerial. Esta inexistência jurídica do regulamento é constitucionalmente
cominada no artigo 140.º, n.º 1, da CRP. Mais uma vez haveria uma exceção ao
Princípio da Inderrogabilidade Singular dos Regulamentos. Para finalizar, suponhamos
a situação em que foram aprovados dois regulamentos, o primeiro aprovado em Conselho
de Ministros e o segundo pela Assembleia Municipal de Lisboa. De acordo com
Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos (2009), “Os regulamentos emitidos
por órgãos inseridos em pessoas coletivas cujas atribuições sejam de âmbito
territorial mais amplo são hierarquicamente superiores àqueles emitidos por
órgãos inseridos em pessoas coletivas cujas atribuições sejam de âmbito
territorial mais restrito.”, o que equivale a dizer que os regulamentos
aprovados pelos órgãos autárquicos devem obedecer aos regulamentos exarados
pelo governo (artigo 241.º da CRP). Presumindo que não houve respeito pelo
regulamento hierarquicamente superior, aludimos à consequência jurídica que no
artigo 143.º, n.º 2, alínea a) do CPA se prende com a nulidade, embora hoje
exista uma tese minoritária que defende que a violação dos parâmetros de
vinculação a um regulamento hierarquicamente superior pode, em determinados
casos, originar a mera irregularidade para os efeitos dos atos praticados. Apesar
disso, face à predominância da tese maioritária, o desvalor em que incorreu foi
a nulidade mas, ao contrário do ato administrativo esta pode ser total ou
parcial. Nesse caso seria necessário que os órgãos administrativos competentes declarassem
uma nulidade suficientemente agravada para que o órgão autárquico pudesse
deixar de aplicar um regulamento inválido. A nosso ver, pelos casos indicados é
razoável que a Administração possa desaplicar regulamentos em certos casos, visto
que, os impedimentos à liberdade de recusar a aplicação de regulamentos pode
prejudicar os direitos fundamentais e as posições jurídicas dos particulares.
Tiago Mota nº 25799
Tiago Mota nº 25799
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