sexta-feira, 13 de maio de 2016


 O Princípio da Inderrogabilidade Singular dos Regulamentos


Ao iniciar a nossa temática, em primeira instância convém esclarecer o conceito de regulamento administrativo. Como refere Freitas do Amaral (2014), os regulamentos administrativos são “as normas jurídicas emanadas no exercício do poder administrativo por um órgão da Administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei.”. Através de uma breve interpretação ao conceito, deduzem-se três elementos imprescindíveis. O primeiro é o elemento material que remete para as normas jurídicas que deverão ser gerais, aplicando-se a uma pluralidade de destinatários e, abstratas, estendendo-se a todas as situações da vida que se subsumirem à norma. Em seguida, apresenta-se o elemento orgânico que, por sua vez, realça quem produz as ditas normas, sendo os intervenientes em princípio os órgãos da administração. Por fim, temos o elemento funcional, em que o regulamento é produzido no exercício do poder administrativo. A propósito deste elemento sublinha-se, por exemplo, o governo pelo facto de possuir competências no exercício da função política, legislativa e administrativa. Deste modo, só será regulamento administrativo se o governo prosseguir as suas atribuições administrativas ao abrigo do disposto pela CRP e pela lei, o que pressupõe conhecermos a sua relação com a lei. Neste âmbito, os regulamentos não podem contrariar a lei, o primado da lei compreende a sua absoluta prevalência. O artigo 3.º do CPA reporta também o direito no seu conjunto, “ […] devem atuar em obediência à lei e ao direito, […] ”, o que traduz um entendimento amplo da legalidade. Além disso, os regulamentos não podem tratar de matérias reservadas a atos legislativos, o que induz a reserva de lei, e têm o seu fundamento numa lei de habilitação, o que transparece a precedência de lei prevista no artigo 136.º do CPA e no artigo 112.º, n.º 7, da CRP. No artigo 135.º do CPA, o legislador procedeu à definição do regulamento. Na parte final do respetivo artigo, o legislador apenas menciona a sua eficácia jurídica externa para efeitos do disposto no respetivo código. Neste contexto, os regulamentos são externos quando projetam os seus efeitos jurídicos para fora da Administração que os emana. A título exemplificativo, ao abrigo do artigo 199.º, alínea c) da CRP, o Secretário de Estado Adjunto do Ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional, no exercício da competência que lhe foi delegada nos termos do despacho n.º 8918/2013, de 6 de junho, determinou no despacho normativo n.º 19-A/2015 a aprovação do Regulamento do Programa Escolhas. O despacho normativo é um regulamento que normalmente provém de um Ministro em nome do seu Ministério e não em nome do Governo. Neste caso a competência foi delegada pelo despacho n.º 8918/2013 através de um ato administrativo. Com efeito, se for aprovada uma Resolução do Conselho de Ministros relativamente ao Programa Escolhas, esta irá prevalecer sobre o despacho normativo n.º 19-A/2015 (artigo 138.º, n.º 3, do CPA).
O Programa Escolhas visa desenvolver medidas, programas e ações no domínio da inclusão social de crianças e jovens provenientes de contextos socioeconómicos mais vulneráveis, em particular dos descendentes de imigrantes e grupos étnicos, detendo ainda outros objetivos como a educação ou a empregabilidade. Consequentemente, este regulamento é uma referência de eficácia externa tendo como participantes diretos as crianças e outras pessoas numa faixa etária até aos trinta anos, que se encontrem nas condições indicadas, bem como os seus familiares. Além disso, visa produzir efeitos jurídicos em relação às instituições que venham a ser parceiras ou promotoras para a prossecução dos fins visados. Atendendo ao Princípio da Inderrogabilidade Singular dos Regulamentos, constatamos que os regulamentos externos vinculam tanto os particulares como a própria Administração que os editou. Os regulamentos podem ser interpretados, suspensos, modificados ou revogados pelos órgãos competentes para a sua emissão (artigos 142.º,n.º 1, e 146.º do CPA), o que já não lhes é permitido é, em regra, desaplicar normas regulamentares em casos isolados. As normas regulamentares são, assim, caraterizadas por uma força jurídica autovinculativa, pelas quais os órgãos da Administração e os particulares ficam juridicamente sujeitos ao seu cumprimento futuro, excluindo-se a livre recusa de aplicação de um regulamento aliada ao facto de constituir-se como fonte de direito e em virtude do respeito pelos princípios de segurança jurídica. Por força do Princípio da Inderrogabilidade Singular dos Regulamentos, um dado regulamento administrativo não pode ser afastado por atos administrativos de índole individual e concreto (artigo 142.º, n.º 2, do CPA). Caso sucedesse, o ato administrativo seria ilegal pela circunstância de ter violado o regulamento. No seguimento do que vem a ser dito, o Princípio da Inderrogabilidade Singular dos Regulamentos não permite à Administração afastar pela via individual e concreta os regulamentos que ela própria criou enquanto não forem excluídos da ordem jurídica, reflexo de um bloco de juridicidade a que a Administração deve obediência para garantir a legalidade das suas ações. Aliás, como indicou Afonso Queiró (1976), segundo o princípio objeto de estudo, “A Administração está vinculada a aplicar o regulamento em concreto, mesmo que a norma regulamentar seja inválida por afrontar uma fonte normativa superior – seja ela a constituição, a lei ou outro regulamento.”. Desta forma, estaríamos perante uma posição fechada e os regulamentos teriam de ser sempre acatados pela Administração e pelos particulares. Porém, o que sucede é que o Supremo Tribunal Administrativo não adota uma posição totalmente fechada, admitindo exceções ao Princípio da Inderrogabilidade Singular dos Regulamentos. No Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17-01-2013, processo 0691/12, mencionou-se que as exceções relacionam-se com a prática de crimes, a salvaguarda de direitos fundamentais, a inexistência jurídica do regulamento ou, quando muito, a circunstância de o regulamento padecer de uma nulidade suficientemente agravada.

Na primeira exceção, caso o vício regulamentar possa determinar a prática de um crime como, por exemplo, o crime por violação das regras urbanísticas por um funcionário, previsto e punido pelo artigo 382.º-A do Código Penal, deve permitir-se que órgão administrativo tenha imediatamente competência para afastar a respetiva aplicação ao caso concreto. No que respeita à segunda exceção, ficcionaríamos que, na aprovação do Regulamento do Programa Escolhas algumas normas regulamentares permitissem o condicionamento da liberdade de imprensa em relação a crimes de imigrantes, por forma a não fomentar a desintegração social dos seus descendentes. Também aqui o órgão administrativo deveria poder afastar a sua aplicação. Ainda assim, os direitos fundamentais detêm um grande elenco que do ponto de vista prático poderia ser levado ao excesso, o que dificulta a sua natureza excecional na totalidade. Na última exceção, referenciamos uma situação de inexistência jurídica de um regulamento, imaginando um determinado decreto regulamentar cuja promulgação não tenha sido objeto de referenda ministerial. Esta inexistência jurídica do regulamento é constitucionalmente cominada no artigo 140.º, n.º 1, da CRP. Mais uma vez haveria uma exceção ao Princípio da Inderrogabilidade Singular dos Regulamentos. Para finalizar, suponhamos a situação em que foram aprovados dois regulamentos, o primeiro aprovado em Conselho de Ministros e o segundo pela Assembleia Municipal de Lisboa. De acordo com Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos (2009), “Os regulamentos emitidos por órgãos inseridos em pessoas coletivas cujas atribuições sejam de âmbito territorial mais amplo são hierarquicamente superiores àqueles emitidos por órgãos inseridos em pessoas coletivas cujas atribuições sejam de âmbito territorial mais restrito.”, o que equivale a dizer que os regulamentos aprovados pelos órgãos autárquicos devem obedecer aos regulamentos exarados pelo governo (artigo 241.º da CRP). Presumindo que não houve respeito pelo regulamento hierarquicamente superior, aludimos à consequência jurídica que no artigo 143.º, n.º 2, alínea a) do CPA se prende com a nulidade, embora hoje exista uma tese minoritária que defende que a violação dos parâmetros de vinculação a um regulamento hierarquicamente superior pode, em determinados casos, originar a mera irregularidade para os efeitos dos atos praticados. Apesar disso, face à predominância da tese maioritária, o desvalor em que incorreu foi a nulidade mas, ao contrário do ato administrativo esta pode ser total ou parcial. Nesse caso seria necessário que os órgãos administrativos competentes declarassem uma nulidade suficientemente agravada para que o órgão autárquico pudesse deixar de aplicar um regulamento inválido. A nosso ver, pelos casos indicados é razoável que a Administração possa desaplicar regulamentos em certos casos, visto que, os impedimentos à liberdade de recusar a aplicação de regulamentos pode prejudicar os direitos fundamentais e as posições jurídicas dos particulares.


Tiago Mota nº 25799



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