segunda-feira, 30 de maio de 2016

O PRINCÍPIO DA BOA FÉ DENTRO DO DIREITO ADMINISTRATIVO

1. Introdução:

O princípio da boa fé está presente em todo o ordenamento jurídico. Já o estudámos em Teoria Geral do Direito Civil e tem sido um auxiliar útil em Direito das Obrigações, não obstante  já termos estudado os reflexos da sua actuação em Direito Internacional Público. O Direito Administrativo não é diferente e, no seu âmbito, o princípio da boa fé encontra espaço para desempenhar o seu papel.
A Constituição consagra o princípio da boa fé no art.266.º, nº2, enquanto princípio fundamental ao qual estão subordinados os órgãos e os agentes administrativos, no exercício das suas funções. A sua positivação constitucional decorre do próprio princípio do Estado de Direito, por sua vez consagrado no art. 2.º da CRP: este implica a protecção da confiança dos cidadãos face às actuações do Estado, implicando um mínimo de certeza e de segurança na vida jurídica.
Também o Código de Procedimento Administrativo consagra expressamente, no art. 6.º-A, a vigência do princípio da boa fé no âmbito da actividade administrativa.
Apesar desta intromissão no Direito Público, foi no Direito Civil que o princípio da boa fé mais se desdobrou. A sua configuração privatista foi acolhida, com alguma cautela, no âmbito do Direito Administrativo. Vamos então ver em que medida a boa fé está presente no Direito Administrativo Português.


2. Considerações gerais:

O princípio da boa fé impõe que a conduta administrativa se desdobra em valores básicos do ordenamento jurídico, implicando que a Administração haja mediante condutas consequentes e não contraditórias, em função dos fins que se propõe alcançar. Não só determina que a Administração Pública actue de boa fé para com os particulares, como significa que a Administração deve dar exemplo aos particulares de relevancia  desse princípio. Tal como FREITAS DO AMARAL, sustentento que, sem a boa fé, já mais se poderia dizer que o Estado é “pessoa de bem”.
O princípio da boa fé divide-se em dois subprincípios: a tutela da confiança (art. 6.º-A, n.º 2, al.a)) e a primazia da materialidade subjacente (art.6º-A, nº2, al.b)).


3. A tutela da confiança:

A aplicação do subprincípio da tutela da confiança estará sujeita, no Direito Administrativo, aos mesmos pressupostos utilizados no Direito Civil: 1) a existência de um comportamento que gera uma situação confiança; 2) existência de uma justificação para a confiança; 3) existência de um investimento de confiança; e 4) a frustração da confiança por quem a gerou. Como defende MENEZES CORDEIRO, estes pressupostos formam um sistema móvel, podendo a falta de um deles ser suprida pela intensidade especial com que um outro se verifique.
O princípio da tutela da confiança encontra várias concretizações jusadministrativistas, mas é em sede de formação dos contratos administrativos que se afirma com especial força, determinando que a Administração não altere injustificadamente o seu critério, não negue o prometido, não formule novas exigências, etc... O mesmo é dizer que podem ser chamados a intervir os deveres acessórios que decorrem do art. 227º do Código Civil.
A jurisprudência tem entendido que o princípio da boa fé só influi no âmbito da actividade discricionária da Administração, não cabendo no plano da actividade legalmente vinculada. MARIA DA GLÓRIA GARCIA, na anotação que faz ao art.266º da CRP, defende posição contrária, sem apresentar, contudo, qualquer argumento. Porém, é possível entrever o que possa fundamentar a aplicação do princípio da boa fé no âmbito da actividade legalmente vinculada: por um lado, no processo interpretativo que compete à Administração (também há interpretação quanto a normas de poder vinculado), parece ser imperativo constitucional e procedimental que esta cumpra a actividade interpretativa de boa fé, não podendo violar a confiança que se tenha suscitado (como ocorreria no caso de um agente administrativo interpretar um poder vinculado num sentido, e de um outro realizar uma interpretação diversa); por outro lado, a boa fé introduz uma série de deveres, tais como deveres de actuação consequente, de informação criteriosa, entre outros, que também existem no plano dos poderes vinculados.
A interpretação do acto administrativo não se esgota nos elementos literais, sendo também relevante, para a fixação do seu sentido e alcance, o sentido que a Administração atribuir ao acto, na medida em que se presume que esta agiu de boa fé (e, por isso, de forma não contraditória). Está assim a boa fé a impregnar o processo interpretativo daquela que é uma das formas por excelência da actuação administrativa. A tutela da confiança (contida no art. 6.º-A, n.º 2, al.a)) impõe que se proteja a posição do particular que, face a um acto administrativo e a uma actuação da Administração, assume que o sentido apropriado a dar ao acto administrativo é aquele que a Administração dá. Se assim não fosse, estar-se-ia perante legitimação de um verdadeiro venire contra factum proprium, em que a Administração podia materialmente adoptar um dos sentidos possíveis do acto e depois invocar erros interpretativos contra o particular.
Uma outra importante manifestação do princípio da boa fé é a produção de alguns efeitos jurídicos do acto administrativo nulo. Segundo o art. 134.º, n.º 1 do CPA, «o acto nulo não produz qualquer efeito». Atente-se porém no facto de os actos nulos poderem produzir efeitos com base em «situações de facto, (…) por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito» (n.º3, art.134º,CPA). Ora, isto quer dizer que os actos nulos vêem alguns dos seus efeitos de facto consolidados em efeitos jurídicos, pelo decurso do tempo. Não quer isto dizer que basta a mera passagem do tempo: esta precisa de se harmonizar com os princípios gerais de direito. Ora, isto opera uma recepção do princípio da boa fé. Está em causa, particularmente, a tutela da confiança do particular que, com base numa situação de facto, acredita justificadamente que o acto é válido e produz efeitos. Mas, qual o sentido de o único facto admitido como justificação para a produção de efeitos do acto nulo, previsto no art.134º, nº3, ser o decurso do tempo? Do ponto de vista prático, é fácil de perceber: o decurso do tempo é objectivo e de fácil avaliação.
Mas, pergunto-me, face a uma outra qualquer situação de facto, ainda que não cristalizada pelo decurso de um lapso relevante de tempo, se não será possível admitir a produção de alguns efeitos aos actos nulos. A resposta parece-me dever ser positiva: em situações de facto tais, que suscitem no destinatário do acto a confiança, quer na sua validade pura e simples, quer até na sua aptidão à produção de efeitos determinados, poderá a boa fé exigir a produção desses efeitos, nos quais o destinatário do acto confia. O que já não se me afigura correcto, porém, é procurar na boa fé a convalidação de um acto nulo; parece-me antes que a boa fé se torna per se num novo título jurídico, que manda, por razões de variada natureza, acatar os efeitos de um acto nulo.


4. A primazia da materialidade subjacente, no art. 6.º-A, n.º 2, al. b)

É sempre difícil definir o que seja a materialidade subjacente e, mais ainda, qual seja o sentido do art. 6.º-A, n.º 2, al.b) do CPA. O subprincípio da primazia da materialidade subjacente convoca a ideia de que o Direito não se basta com meras actuações formais e exige que aos comportamentos corresponda uma verdade material, que traduza uma ponderação finalística de cada conduta. Este subprincípio é de extrema importância, pois é através dele que se proíbe o exercício inadmissível de posições jurídicas.
Muitas vezes, o subprincípio da materialidade subjacente é ignorado por ser considerado incompatível com o princípio da legalidade, que supostamente introduziria um formalismo tal a que não era possível aquele subsumir-se, e ainda por se julgar o seu conteúdo pouco útil, visto que estaria absorvido pelo princípio da proporcionalidade. Esta mesma doutrina vem dizer que o princípio da materialidade subjacente já adquire relevância enquanto parâmetro das condutas dos particulares.
Tal posição traduz uma visão autoritária da Administração e tem exclarecida a ideia de que os particulares são pouco confiáveis, sendo a Administração de plena confiança. Porém, a primazia materialidade subjacente encontra, como afirma MARCELO REBELO DE SOUSA, consagração legal explícita na alínea b) do art.6º, nº2, do CPA, pelo que será inadmissível qualquer tentativa de desvincular a Administração do respeito pela materialidade subjacente. Efectivamente, ao apelar ao «objectivo a alcançar com a actuação empreendida», o CPA impõe como critério de actuação, tanto aos particulares como à Administração, a ideia de que os comportamentos devem corresponder à verdade material, e não à mera verdade formal; parâmetro este que não cabe, de forma nenhuma, no princípio da proporcionalidade, que mais parece impor uma ponderação da medida, necessidade e adequação da actuação, atendendo ao fim, do que preocupar-se com a verdade material, que é uma exigência de Justiça.
Creio que o subprincípio da materialidade subjacente pode trazer para o Direito Administrativo figuras como as inalegabilidades formais (tornando inadmissível que a Administração, tendo provocado o vício de forma de má fé, possa beneficiar desse vício, inquinando a actuação administrativa), por exemplo.
Ainda assim, o princípio da boa fé tem de ser aplicado com cautela. A boa fé apresenta-se sempre como a “válvula de escape” do sistema, apta a corrigir as injustiças que, pela violência que apresentem face à ordem jurídica, devam ser repudiadas. 

Diogo Miguel Nunes da Conceição
Número 26663
Subturma 4

1 comentário:

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